quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Com os meus botões - Chico Buarque

Artigo publicado em O Globo/Estado - 14/06/98

"Tostão me perguntou meses atrás, aqui mesmo em Paris, se o futebol do Denilson lembrava o Canhoteiro (ponta-esquerda do São Paulo que só eu vi jogar, na década de 50). Vinda de quem vinha, aquela pergunta me paralisou. Fiquei postado na praça, sem raciocínio, olhando para o Tostão. Se bem que, quando topamos um craque de bola no meio da rua, vestido à paisana, andando como a gente anda, falando como a gente fala, nós, amadores, sempre nos atrapalhamos. Viramos idiotas. Certa vez fui apresentado a um antigo centromédio do Santos, o Formiga. Depois de um breve diálogo, o assunto esgotado, sem saber por que continuei a encará-lo. O silêncio se prolongava, incômodo, e ainda encasquetei de colocar a mão no ombro do Formiga. Com o polegar, comecei a pressionar de leve a sua clavícula, e me lembro que ele ficou um pouco vermelho. Então me dei conta de que, pela primeira vez na vida, conversava pessoalmente com um botão. Formiga tinha sido um dos meus melhores botões, apesar de meio oval, um botão de galalite, vermelho.Na minha mesa, Tostão não chegou a ser botão. Eu já era bem crescido quando ele apareceu, e fica um pouco ridículo fazer botão de um jogador mais novo que você. Botões, para a garotada daquele tempo, eram venerados como ícones, beijados, polidos com flanela, concentrados em caixa de charuto e inegociáveis. Pois bem, vi o Tostão deslizar nos gramados e, sem querer desmerecê-lo, era mesmo um homem com braços e pernas. Nem por isso há de nascer um centroavante que se lhe compare, como nunca haverá ponta-esquerda semelhante ao Canhoteiro que só eu vi jogar. Desde já discordo de quem, concordando comigo, sustenta que o futebol era muito mais bonito no passado. Ao contrário de nós mortais, que éramos todos mais bonitos no passado, os craques do passado são ainda melhores hoje. Penduraram as chuteiras, mas na permanente edição da nossa memória vão produzindo novos lances memoráveis. Posso vê-los sempre de uniforme, uniformes diferentes uns dos outros, num vestiário com o teto cheio de chuteiras penduradas. Reúnem-se em torno do técnico, ouvem a preleção em silêncio, mas não prestam muita atenção. Dispensam alongamentos, entram em campo e já começam a jogar. Não dão entrevistas. Não fazem cera, não atrasam a bola, não cobram lateral, não ficam na barreira, faz cada qual o que lhe dá na telha. E no entanto exibem um belo conjunto, mantendo-se invictos há anos e anos, mesmo porque contra eles não há quem se atreva a jogar. Me vendo de boca aberta, naquela tarde gelada, o Tostão não fazia idéia dos gols que continua a marcar dentro da minha cabeça."Ele te lembra o Canhoteiro?", perguntava o Tostão, e de cinco em cinco minutos a pergunta me rebate no ouvido como um gongo, enquanto vejo o Brasil jogar no Stade de France, sem Denilson. Há o grande Rivaldo, seu estilo de ema, há o nosso Ronaldinho, de quem tudo o que se diz não basta, e há um oco. Sim, a ausência do Denilson agora me lembra exatamente o Canhoteiro, cuja camisa Zagallo usurpou na Copa de 58, privando o planeta de ver o que só eu via. Estamos no segundo tempo, Brasil e Escócia um a um, e já me pergunto se, barrando o Denilson, Zagallo não pretende barrar o Canhoteiro de novo, 40 anos depois. Maldade minha, claro, pois eis que o Denilson entra em campo, recebe a bola rente à lateral esquerda, passa zunindo por dois escoceses e toca para o meio, de calcanhar. A jogada foi bem em frente à minha cadeira, permitindo-me ver até o branco dos olhos do Denilson, e não direi o que se passou naquele instante com a fisionomia dele. Não direi de quem era a figura que vi num relance, vestindo a camisa 19, porque nem eu próprio acredito nessas coisas. Mas alguma coisa os escoceses também viram, e ali se assombraram, e se atarantaram, e perderam a pouca cor que têm, e bateram cabeças entre si e fizeram um gol contra.É um garoto, o Denilson, e imagino o que será seu futebol daqui a mais ou menos 30 anos, quando estarei abarrotado de memórias. Seu drible na corrida, calculo que possa chegar a algo como a velocidade do TGV Paris-Nantes, embora jamais à do Canhoteiro. Babando de antemão, me vejo a lembrar o Denilson adiantando a bola na medida certa, feito isca, para surrupiá-la do bico do pé do beque. Verei o Denilson em nova arrancada, como quem corre num parque, e a bola que corre serelepe ao seu lado, quase latindo. Verei o Denilson desviando a bola sem tocá-la, talvez com um assobio - ele tem boca de assobiador. Verei o molejo dele, trançando as pernas diante do próximo adversário, e, de repente hei de ver o drible de corpo. O drible de corpo é quando o corpo tem presença de espírito.Se eu fosse menino, faria do Denilson um senhor botão. De tampa de relógio, acho.Babando de antemão, me vejo a lembrar o Denilson adiantando a bola na medida certa, feito isca, para surrupiá-la do pé do beque."

O País do Futebol não merece este título. Estádios em péssimas condições, com falta de vias fáceis para acesso, jogadores que, quando recebem salário, são mal pagos, propina entre árbitros, enfim, uma avalanche de problemas, dificuldades e hipocrisias. Mesmo assim, o torcedor gasta fortunas viajando atrás de seu time do coração em final de campeonato. Flamenguistas queimam camisetas com fotos do Fenômeno. Até Chico Buarque diz passar horas ainda hoje relembrando gols que não foram feitos, mas que existem em sua memória.

E o Brasil enquanto isso? Enfrenta a crise econômica, suporta o final de um mandato presidencial que não sabe se é de esquerda ou de direita ou de trás. Tudo isso sem que o povo dê a mínima, sem manifestações, sem cobranças, sem participação.

É mais importante o resultado do Brasileirão (afinal, foi ou não o São Paulo quem deu os ingressos do show da Madona ao Tardelli?), do que o modo como foi finalizada a confusão dos Grampos no Governo. Opa, isso pra quem sabe que teve uma CPI do Grampo!

Mas enfim, "assim caminha a humanidade, com passos de formiga e sem vontade".

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Poema 17 - Tasso da Silveira

"Esquece o tempo. O tempo não existe.
Acende a chama às límpidas lanternas.
Nossas almas, a ansiar no mundo triste,
são de uma mesma idade: são eternas.


Se no meu rosto lês mortais cansaços,
é natural. A luta foi renhida:
caminhei tantos passos, tantos passos
para que te encontrasse em minha vida...


Não medites o tempo. Se muito antes
de ti cheguei, para a áspera, inclemente
sina de navegar por este mar,


foi para que tivesse olhos orantes,
e me purificasse longamente
na infinita aflição de te esperar..."



Tasso fala belamente sobre este mistério que nos envolve: o tempo. Que é ele além de dúvidas, idas e vindas, medos e surpresas? É o tempo o transporte da vida. É nele que embarcam as histórias, as lembranças, o futuro. O tempo é o motivo pelo qual se vive, algumas vezes em vão, outras não.
Tudo é eterno, basta que viva. A morte se encontra no abandono, mas aquele que se delicia com os simples prazeres viverá eternamente. Sorrir, cantar, esperar por alguém. A esperança purifica a alma, acalma o coração, prepara o corpo.
Navegar é preciso.